terça-feira, 17 de agosto de 2010

Carta endereçada a alguém


Eu andava perdida em busca das palavras - das palavras certas que atingissem o seu centro de equilíbrio e te fizessem desmoronar. Mas eu falhei, e falhei porque percebi tarde demais que a mensagem exata nunca surge após uma procura intensa, mas se formula espontânea e livre, talvez segundos depois de se olhar nuns olhos e lá enxergar as razões que uma pessoa tem para estar ali, naquele momento, permitindo inconsciente que se perscrute sua alma.

O que importa é que finalmente entendi que o que tenho a lhe dizer não é mais que uma imensidão de silêncios, enfileirados numa dada sequência de pensamentos mudos. Sim, o que posso lhe oferecer, todo o resultado de longas conversas e um desfile interminável de palavras, não é mais que meus silêncios eloquentes, que não querem dizer nada além do óbvio que já significam: silêncios. Em seu estado puro, borbulhando mensagens ocultas. O nada.

Se a distância e o tempo me permitissem, se eu pudesse ao menos deslocar meus olhos por alguns átimos de segundo para onde quer que estejam os seus agora, eu gostaria de entregar as minhas palavras mudas de forma direta e indolor. Então você não me poderia acusar de crueldade, você apenas aceitaria passivamente aquilo que lhe é dado. Aceitaria porque é o que lhe cabe: as minhas palavras feitas de silêncio, o meu silêncio que te fala. Sei que você sabe que nunca poderá preencher as lacunas; as lacunas já estão repletas até o topo de significados confusos, você sabe, você sabe.

Só você sabe. Só quem realmente possui e pressente o silêncio, só quem vasculha as ausências é capaz de entender o que se é dito então. Só quem não possui a inocência de pensar que com o silêncio não se fala. Porque o meu silêncio, o meu silêncio pra você é um grito dilacerante.
O meu silêncio para você, aquele que lhe dou de presente, é um protesto que irá confundir e violar os seus ouvidos. É uma indignação e uma revolta que não caberiam nas palavras, elas que sempre expressam. É um vácuo, é uma falta, é um conjunto de pausas que nunca emitem verbos, mas significam, significam, incansáveis como quem respira. O exato e doloroso oposto de uma verborragia. E, quando você acha que finalmente entende, percebe que, na verdade, só está mesmo perdido no nada. Porque é o nada. É um labirinto de não-palavras.

Este papel está cheio do nada. Não são palavras, não se engane - o que eu verdadeiramente te dou está nas páginas em branco que seguem, está no vazio do envelope. O vazio que docemente te aguarda, porque a você pertence.

O vazio, meu amor.
O vazio que te devolvo, a substância com que você suavemente tece todos os seus argumentos de vento e farpas.
O vazio, porque - de todas as coisas - é o que ainda teima em permanecer.

segunda-feira, 28 de junho de 2010

Conversa inesperada em um dia de tédio

- Eu às vezes queria voltar no tempo.
- Você é jovem demais. A gente é jovem demais.
- E então só gente velha pode ser nostálgica?

Silêncio.

- É que eu tenho saudade de não ter vergonha.
- ??!!?
- É, não ter vergonha. Saudade de não ter vergonha de falar quando eu queria, não ter vergonha de sorrir com coisa à toa. Não ter vergonha de ser só eu, ser espontânea mesmo, sabe?
- E quem é que te impede de não ter vergonha hoje em dia?
Silêncio.
Ela ensaia um murmúrio que diz "os outros", mas esta é uma resposta débil, previsível e covarde demais.
- Não é minha culpa. Não se pode fazer nada sem ter medo do olhar das pessoas, que estão sempre ali, vigiando cada deslize.
Ela mexe no cabelo, sorri de leve e continua:
- E o fato é que as pessoas sempre estiveram ali, com se senso crítico implacável. Se bem que criança é bem mais facilmente perdoada. Mas eu queria... eu ainda queria ter essa capacidade infantil de ignorar o que não merece atenção.
- Às vezes eu acho que vale a pena o risco de parecer louco, ou mesmo ingênuo. Isso de expor o que se pensa e o que se sente, como as crianças, é perigoso, eu sei. E olha que nós não temos a desculpa da inocência. Estranho como o medo cresce com o passar do tempo, não devia ser o contrário?
- Então isso significa que tende a piorar. E se a gente fingisse que não está assustado? E se a gente fingisse que não se importa com os outros, só pra se lembrar um pouco de como era bom simplesmente ser? E se a gente regredisse às avessas? Talvez assim se criasse uma realidade só nossa, sem máscaras e sem receios de nada. Só verdades. Só vida. Até que tudo o que se fingiu, tudo o que se quis tornar, virasse mesmo real. Seria quase a invulnerabilidade. Seria, quem sabe, coragem? Uma revolta muda de duas pessoas que, juntas, só cometem a ousadia de querer ser quem são?
Ele abre a boca pra falar, se interrompe, pensa melhor e sorri com um pudor que já se assemelha ao da criança recém-resgatada que existe nele.
- O nome disso é amor. - diz.

sexta-feira, 16 de abril de 2010

De instante e distante

O homem levantou-se do sofá com um novo e estranho peso a oprimir-lhe os ombros. Estendeu a mão trêmula para desligar a televisão, num movimento de câmera lenta. Logo se vê à janela, mais um anônimo espectador da noite urbana. As luzes, o som de carros ao longe. As pessoas inquietas e apressadas, sempre apressadas - em busca de quê? Isto ele se indaga, intrigado.
Ainda traz frescas na memória as cenas do noticiário das seis. Aquilo lhe congestiona a garganta e revira o estômago como uma indisgestão. Lá fora, para além desta janela, é o mundo à revelia. O mundo que talvez esteja enfastiado e surrado e saturado de tantas eras de incoerência, tantos corpos a fremir naquele ciclo vicioso que era a vida. Lá fora é a insegurança, a violência inescrupulosa. Homens que se esfacelam como ratos. Ele tem nojo, nojo profundo dessa raça que é mortal e que no entanto usufrui da existência julgando-a infinita, essa raça que não enxerga o outro que geme em súplica ao lado pois tem a vista turvada pelo egoísmo.
E então uma repentina e imensa compaixão por si mesmo e também pelos outros, que se atropelam, sem rumo, nas calçadas. Como somos frágeis! Quão absoluta é a certeza da nossa vulnerabilidade. Na noite de lua, cheia e límpida, que é um prenúncio de verão, apenas a tristeza dos homens é real. Ela paira, palpável, numa solidez tão verossímil que chegava a comprimir o ar.
Ele tem a súbita necessidade de apertar a mão de alguém. É tão difícil suportar toda a miséria humana num peito de velho. Tanto medo, tanta raiva e revolta, tanto desejo desesperado de amor. Na noite, o silêncio profundo dos que mudamente agonizam de vida é um grito dilacerante. E por isso o homem se sente parte integrada da massa humana que sofre.
Luiza entra em casa com seus costumeiros raios de sol e bate a porta. Ela toda está envolta na aura da juventude irremediável. Vê o avô à janela e o cumprimenta com um indiferente aceno de cabeça. Ele retribui, grave. Luiza então some pelo corredor de sombras.
O homem deseja, agudamente, que a neta retorne para a sala. Ela é como a luz do sol mais quente de janeiro em plena noite escura. Se pelo menos lhe dirigisse algumas poucas palavras, ah, que bálsamo seria. Mas o que quereria a menina com um velho taciturno e angustiado? Ele era a presença desagradável, a nódoa a lhe manchar a alegria.
Luiza, em seu quarto, cantarola baixo para enganar o medo. A noite da grande cidade, fria e indiferente, a envolve na mais absoluta solidão. Justamente agora, ela que precisava de proteção e palavras amenas. Chegará o momento em que não suportará mais e então cairá no pesado sono dos que dormem para escapar da dor.
E entretanto o avô está na sala contígua, a apenas poucos passos. Ah, se ele ao menos amenizasse a dureza de seus traços, talvez ela enfim tivesse a coragem de se aproximar. Porém ele, armado de sua altiva experiência e serena sabedoria, parecia não se importar com ela, uma figura triste que perambulava pela casa com passos inseguros.
Luiza deseja chorar. Não sabe que ela e o avô são dois estranhos a se pedir mutuamente, com o mesmo desespero e o mesmo desamparo.
O homem, na janela, está em constante estado de iminência de morte. A pior das desilusões era aquela do cair da noite. Tão logo o crepúsculo se dissipava e lhe vinha o pensamento insistente de que a natureza, mais uma vez, se mostrava uma metáfora exata da vida.
"Onde está você, Luiza, a encarnação solar, a intensa iluminação do mais terno e radioso meio-dia?", ele pergunta mudamente, mas ela está distante, tão distante, tão longe quanto algo pode estar, no inatingível quarto ao lado.
Como convocada por um místico apelo, ela aparece, mas ainda assim nada pode falar. Será que ele é capaz de enxergar a tristeza que tão forte emana? Quando enfim se estabelecerá a comunicação neste pseudo convívio de gestos mudos e palavras mortas?
Da janela, o homem lança um olhar crepuscular.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Birth

É estranho, mas acho que na maioria das vezes não sei o motivo pelo qual começo as coisas. E deve ser mesmo uma tendência generalizada...sei lá. Do mesmo modo como ignoro as razões do início de algo, também interrompo o que inicio sem razões aparentes. Enfim, o fato é que tal inconstância não me parece motivo suficiente para desistir de tentar as coisas e ceder a ímpetos novos, é o que importa...
Um blog. Tudo bem. Nada além de escrever quando der vontade, como eu já fazia antes, mas a questão é: por quê? "Porque deu vontade" é uma justificativa válida ou demasiado simplista? O mais engraçado e irônico de tudo é que nem desejo, exatamente, que alguém leia...
Deixe-me tentar explicar então esta bagunça de raciocínio que me define, mais que tudo:
Palavras são o meu fraco. O meu ponto mais fraco e mais remoto. São também e paradoxalmente a minha maior força.Palavras são a minha vulnerabilidade. São a minha essência. São a forma de expressão que escolhi para ser, para existir, para respirar. Palavras são oxigênio. São perda de ar. São consolo e são conflito. São a manifestação da minha sensibilidade revoltada e tão pouco superficial, tão pouco tangível. E que não se engane, palavras são também dor. E abismo. Palavras são sádicas. São fugitivas. Soberanas, e de repente tão repentinamente submissas. São a minha forma tão secreta de poder. São o meu segredo mais escondido. E, finalmente, são o meu enigma de revelação.
Ah, o medo. O medo de demonstrar, de transparecer, de não perceber e deixar ir um pouco mais além. O medo de ser? O medo de expressar o que se debate em mim? Sei que isto explica a razão de sempre ter ocultado os meus escritos. Não, não medo de críticas e opiniões alheias. Mas antes o puro e límpido e letal medo de me deixar entrever, de me deixar enxergar, como se arrancasse de mim mesma as estranhas e as deixasse expostas, ao vento. Ao mundo. O eterno receio de me sentir vulnerável. Sem proteção. As palavras. Eu.
Eu que não sou nem um pouco explícita. Eu que sei que todo o meu mistério, toda a minha verdade e todo o meu sentimento está sempre, sempre, contido nas artimanhas do implícito. Nas teias do contexto. Às vezes, só às vezes, emergida do fundo, me deixo vislumbrar na superfície. Mas é tão raro.
Constantemente à caça de momentos de exceção, que são também momentos de fugidio e de efêmero.
"O que me mata é o cotidiano. Eu queria só exceções", já dizia Clarice Lispector. E a busca por exceções é tão árdua, Deus, juro que às vezes parece mesmo impossível e infrutífera. Mas e o que fazer com o caos dentro de mim, e o que fazer com a tempestade, e acima de tudo, o que fazer com o vácuo?
Eu sei lidar com a desordem e o excesso, mas juro que não possuo aptidão para a ausência.
E justamente para enfrentar estes instantes de vazio é que preciso prosseguir acreditando nas exceções, é só por isso. É uma crença vital e inerente. É um querer necessário, é a chave para ver a beleza no simples, eu que dou graças por possuir este olhar.
E desejar só exceções aparentemente é pedir demais, eu sei. Aparentemente é ser ambiciosa demais, é ser prepotente demais, é exigir demais da vida que, para todos os efeitos de realidade, não devia passar de uma sequência cadenciada de rotinas. Mas como eu poderia jamais explicar que a minha prece é humilde, e meu desejo não é senão uma ínfima parte de um anseio maior, de um anseio ainda maior de intensidade?
Não é exigir muito. É apenas querer o que cabe a mim, acredite.
Pelo menos tenho a sorte de não me cansar da procura. Da busca. De achar em meio às pedras comuns uma centelha de qualquer coisa mais reluzente, qualquer coisa que brilhe de forma genuína. Garimpo.
Sôfrega, garimpo.